"Nada a dizer" e uma reflexão sobre masculinidade tóxica




A traição é um tema já muito explorado pelas artes, seja na literatura, no cinema, na música e onde mais o ser humano consegue transformar sua dor em matéria-prima. Falar sobre uma mulher traída pode esbarrar em muitos clichês, mas Elvira Vigna deu para essa obra um tom mais reflexivo do que acusatório e nos permitiu refletir sobre a origem do comportamento masculino brilhantemente exposto pela autora.

A personagem principal, uma mulher sem nome de 60 anos, descobre que seu marido a está traindo com “N”, uma jovem amiga da família. Na tentativa de entender todo o processo de traição, a personagem exige que o marido lhe conte tudo, desde o primeiro encontro até a descoberta do caso. Sem compreender a motivação dessas ações a esposa passa as 161 páginas fazendo uma reflexão de si mesma e de seu casamento em uma busca por razões. Ao mesmo tempo, seguimos uma linha de descobertas feitas por ela e acompanhamos de maneira muito dolorosa a traição - era como se eu pudesse sentir aquela angústia. 

Em uma de suas tentativas de se encontrar, a personagem resolve ser mais como “N”: chique, maquiada e extrovertida. O processo de culpa é extremamente comum em casos de traição, onde o motivo do ato é muitas vezes transferido para a mulher em um processo de legitimação do comportamento masculino. Não podemos negar que muitas vezes, como mulheres, já escutamos “se cuida, senão ele vai procurar em outro lugar o que não tem em casa” em uma forma de nos forçar a sermos sempre muito bonitas, agradáveis e eternamente dispostas ao sexo. A traição passa a ser uma busca por aquilo que o homem acha ser seu por direito e não uma transgressão de uma das coisas mais valiosas de um relacionamento fechado: a confiança.

A construção social do ser homem e do ser mulher fez deles seres livres para buscar o exercício de sua sexualidade e fez delas submissas à serviço da manutenção dessa masculinidade. Quando a esposa de Elvira Vigna se volta primeiramente para si em busca do motivo, podemos ver claramente esse sistema entrando em vigor. No momento em que ela diz que até aceitaria se fosse um caso de uma noite, ela está entendendo que esses comportamentos transgressores são naturais aos homens e que nós, como mulheres devemos entendê-los. Quando não questionamos o quão tóxico se torna para nós esse eterno permitir que se dá aos homens, aceitamos as condições de não iguais e lubrificamos essa engrenagem do patriarcalismo.

A esposa, no fim, se vê livre dessas culpas. Em um processo doloroso de traição ela pôde entender que os anos passam e as rugas masculinas lhe abrem mais portas enquanto as femininas apenas as fecham, quando uma é sinônimo de experiência a outra é de desleixo em uma busca social pela infantilização das imagens femininas. Em um movimento onde não deixaremos mais passar esse tipo de comportamento, leituras como Nada a dizer têm muito a dizer apesar de seu título. A busca pela libertação do comportamento feminino imposto pode gerar também uma mudança no comportamento masculino, porque sabemos que, no fim, nem homens e nem mulheres se beneficiam da toxicidade dos papéis impostos.


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