"A tal felicidade" e a alegria que me cabe em escrever





Teve infância. Teve lá seus oito, nove, dez anos e só. Afinal, infância por infância todos tiveram uma, mesmo que passada lenta e dolorosamente. Talvez não devêssemos chamar de infância esse período dentro de um quartinho chamado desgostosamente de casa, ou até mesmo aquele tempo em que se encolhia com as pernas junto ao tronco a observar o constante sofrimento frente aos seus olhos. Não, não se pode chamar esse resquício de vivência de infância. Mártir, quem sabe.

A mãe, daquelas arrumadeiras à moda antiga, sentia-se infinitamente confortável em sua letargia intelectual. Porém, de certo modo, admirava-a e somente isso. Não era uma mulher muito dada aos carinhos maternos, a não ser com aquelas criancinhas gordas e coradas de famílias abastadas para quem trabalhava. Sentia, bem no fundo de sua alma, um desejo incontrolável de poder tingir suas bochechas de rubro só para ter aqueles sorrisos doces. Afinal, não gostava dos olhares de canto e dos sorrisos zombeteiros que lhe eram lançados. Como fui burra, repetia a mãe em meio às broncas, deveria ter te tirado enquanto era tempo. E a menina chorava calada, como quem teme a própria voz.

O interior da casa não era algo que condizia com os melhores hábitos higiênicos. Fadada a esmagar-se em um canto sujo, bem ao fundo do casebre, viu as alegrias serem dissipadas pouco a pouco. Não sabia ao certo que tipos de alegria poderiam existir, mas imaginou que aquelas vozes infantis que riam gostosamente em volta de sua casa seriam um tipo de felicidade. Fechava os olhos e parecia sentir a brisa no cabelo emaranhado de fios grossos, ouvir alguém lhe chamando divertido e rindo abertamente. Então surgia no pequeno coraçãozinho uma esperança radiante que, por instantes, ofuscava toda sua consternação. E sentia-se feliz, ali encolhida, de olhos cerrados, respiração ofegante e sorriso singelo.

Não tinha irmãos, primos e nem uma perspectiva de vida. Toda sua existência se resumia nos momentos de solidão quando a mãe saía para trabalhar e nas horas de pavor crescente quando a mesma voltava para casa. Era sempre a mesma batida na porta, como quem desgosta mortalmente chegar em casa, e a mesma sequência de insultos seguidos de tapas e apertões. Enquanto mantinha os olhos fechados com uma força descomunal, imaginava que tudo o que lhe acontecia era inteiramente sua culpa. Pensava que não era boa o suficiente para aquela mãe, talvez causasse tanto transtorno que vê-la era a pior coisa de seu dia. Quem sabe se fosse como aquelas criancinhas gordas e coradas...

Porém, foi no dia em que sua mãe não voltou para casa no horário costumeiro que seu coraçãozinho pareceu parar. Prensou-se contra a parede fria e tentou esquecer esse medo insano que parecia crescer mais que sua fome no seu terceiro dia de jejum. O barulho das explosões constantes e ritmadas ainda tomava conta da rua fazendo seu corpo magro e pequeno encolher-se em uma bola de ossos. Olhava constantemente para a porta esperando a figura impassível da mãe aparecer como de costume e fazê-la ver que tudo não passava de um pesadelo um pouco pior. Mas nada aconteceu.

Os barulhos, que agora tinha caracterizado como tiros, eram acompanhados de gritos histéricos e pedidos de socorro. Já tinha ouvido coisa parecida enquanto sua mãe se encolhia em um dos cantos do quartinho. Traficantes malditos! Vão acabar com a minha casa! E lembrou-se do destino de quem estivera nas ruas aquele dia, mamãe havia dito que algumas de suas amigas tiveram os filhos mortos e até mesmo pessoas que passavam pelas calçadas se encontraram com um destino cruel.

Seus olhos marejaram e pensou na mãe que demorava a chegar. Não se preocupe, pensou, mamãe sempre chega. E esperou. Esperou até seus bracinhos não poderem mais se mexer e suas pálpebras parecerem de concreto. E esperou. Esperou até sentir seu corpo magro cair sem movimento contra o chão duro da sala e sua respiração falhar. E esperou. Esperou até ser engolida por um abismo negro onde pode, enfim, saber o que era essa tal de felicidade.


2 comentários:

  1. Li mais de uma vez.....e só queria ter certeza que foi você que escreveu.....Parabéns....adorei....lindo...profundo....Te amo.

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